Aos meus queridos afilhados, colegas e amigos da 10ª Turma
Uma das coisas mais agradáveis ao meu espírito é o ato
de escrever. Meu psicólogo me disse que escrever gratifica mais que o sexo, o
clímax não chega nunca e sempre estamos em busca do ideal da perfeição. Foi
mais para consolar-me, eu sei, mas gostei dessa observação. Confesso que me
embaracei depois da carta de convocação do Hélio para gravar umas palavras no
blog de 30 anos. Não compreendo bem o que significa blog, mas, vamos lá.
Não sei por onde começar, se pela Faculdade, pelo meu
inusitado processo de admissão para ingresso como professor, pelas recordações
da turma e de alguns de seus componentes, ou pela honra com que me agraciaram
os formandos ao me escolher de paraninfo. Pensando bem, vou tratar desses temas
todos. Às favas a concisão e a objetividade.
Começo por mim, afinal sou do signo Leão e ainda
nascido em 13 de agosto. Sinto-me escusado e plenamente justificado por meu
individualismo, não é egoísmo. Sem pejo digo-lhes que fui o único professor da
UPF escolhido pela elegância no vestir. Em março de 1975, já em curso o
semestre letivo e a Agronomia sem professor de Zootecnia. Apresento-me na
Secretaria como candidato e sou recebido pelo Gilson Fontoura, ausente o
legendário Diretor Rodoaldo Damin. O arguto secretário mira-me com atenção, um
misto de admiração e perplexidade. Pede-me o currículo e o exibo confiante.
Tinha ordem do Diretor de contratar o primeiro que chegasse, afinal as vozes de
protesto dos formandos de 1975 já se faziam ouvir. Ao final das orientações
burocráticas e documentais, verbaliza uma benigna apreciação acerca de minha
elegância, sem resvalar para uma outra ainda mais delicada sobre minha beleza.
Não era para menos. Impactou-lhe meu casaco em tom grená entremeado de
pontinhos da mesma cor, o que se chama no jargão francês da moda, “ton sur ton”. Linda a combinação, camisa
lilás, de seda, gravata branca. Não viu Gilson a parte do vestuário abaixo da
cintura, a calça grená e o sapato que brilhava, encoberta pelo balcão. Foi o
bastante para ser admitido.
Meu primeiro dia de aula foi tão nervoso quanto o dia em
que reuni coragem e inspiração para declarar meu amor àquela coleguinha de
jardim de infância dona de lindas pernas alvas e volumosas para seu tamanho.
Apresento-me ao Diretor para o primeiro dia de aula. Não queria saber de
conteúdo programático e coisas do gênero, ordena-me ir direto à turma dizer
quem eu era. Recuso-me a esta via tão sumária e peço-lhe sua companhia sem
saber o que me esperava. “Esse é o novo professor de Zootecnia”, anuncia.
Lembro-me de palavras tais como “não havia outro, só ele se candidatou; o
semestre já conta 30 dias e vocês podem atrasar a formatura”. Nenhuma palavra
de incentivo e louvor.
Só mesmo um leonino poderia encontrar e superar tal
circunstância. Não somos egoístas, somos egocêntricos sérios, nos bastamos a
nós próprios. Quando entendemos a justeza da causa não olhamos para mais nada e
não medimos conseqüências. Minha carreira começou com um tropicão, entretanto foi
além de minha mais otimista expectativa.
Essa é outra história.
Devo falar sobre a 10ª Turma da Faculdade de Agronomia
da Universidade de Passo Fundo. Antes mesmo da formatura, já tinha vínculo
estreitos com alguns de seus componentes. Vou rememorar alguns fatos importantes
e alguns personagens.
A Turma tinha uma notória característica negativa, só
havia uma representante feminina, a meiga e querida Jôse Mari Guedes. Hoje
neste quesito nossa Escola e nosso Curso são uma maravilha. Nunca mais vi nossa
colega e dela nunca mais tive noticias. Soube que havia se radicado no Paraná. A
informação mais recente é de que estaria atuando na Divisão de Controle de
Vetores da Secretaria Municipal de Saúde em Ribeirão Preto
(SP). Espero suprir essa carência no
encontro de sábado.
Alguns da Turma eram chamados pejorativamente de
cochonilhas, aqueles insetos homópteros coccídeos, que, revestidos de
substâncias cerosas, se aderem a distintos órgãos das plantas para sugar-lhes a
seiva. Os detratores diziam que o hospedeiro era um professor, mais tarde
escolhido Patrono. Esse pequeno grupo variava no número de componentes segundo
as circunstâncias e oportunismos, alguns entravam e saiam, com mais ou menos
tempo de permanência. Certos colegas se insurgiam à mera suposição de que
poderiam ser considerados membros dessa sociedade semi-secreta. Os mais fiéis
se defendiam e diziam em seu favor que sempre estavam a sugar a doce seiva do
saber e não eram, de nenhuma forma, parasitas. A controvérsia ainda não se
esclareceu, penso que nunca haverá de se esclarecer cabalmente. Só sei que um
dos mais fiéis deste grupo é hoje professor de Entomologia.
Com Boller, Hélio e Fontanelli percorremos os colégios
públicos de Carazinho a falar de ecologia e dos males provocados pela poluição do
ar das águas a jovens mais ligados do que os de hoje. Quando o Boller, com sua
suíça e calvinista seriedade, fazia previsões catastrofistas, a gurizada
esbugalhava os olhos e permanecia boquiaberta de pavor por longos minutos. Hélio
era menos dramático; Fontanelli, bom expositor, mas também interessado em levar
conversas paralelas com as professoras em ordem decrescente de beleza. Como bom
coordenador, eu o ajudava com empenho exagerado nessas agradáveis tarefas.
Miranda cito-o muito por aí pela pronta e bem-humorada
resposta à que Osvaldo Loblein me fez “se se podia criar porco no trevo?”. O
hoje destacado pesquisador da Embrapa emendou, sem dar-me tempo de articular
uma resposta, que “isso seria muito perigoso pois os porcos poderiam ser atropelados
pelos caminhões”. Perfeito, frase espirituosa. Não pude deixar de apreciá-la
com o riso inocente e sem intenção de escárnio. Assim não entendeu o
inquiridor, que, zangado, se retirou da sala. Peço a ele tardio perdão. Em meu
socorro digo que a pergunta foi insuficientemente elaborada e formulada.
Poderia ser “pode-se criar suínos alimentados com trevos (Trifolium spp)? A resposta seria outra, contudo nós teríamos
desperdiçado uma linda e jocosa recordação.
Com o Adelmir encontrei-me fugazmente em diversas
ocasiões, ele sempre esfuziante, jovial, carinhoso, parecido a um guri. Adoro a
jovialidade.
O Driessen se enfurnou em Joaçaba, nunca mais o vi. Com
o Ramiro me encontro amiúde nas caminhadas domingueiras pela Flores da Cunha em
Carazinho, considerada a maior avenida do mundo em relação ao tamanho da
cidade. Trabalhar com os chineses agricultores não deve ser coisa fácil, mas
ele segue altivo e persistente, o que denota sua paciente competência
profissional.
César Farias é bem considerado profissional que
trabalha com empresa Agropecuária em Lagoa Vermelha. Sócio
de Getúlio Cerioli, formado na UPF e atual prefeito, também teve mandato como
vice-prefeito municipal.
Dario Gusatti milita nas consultorias e hoje é
professor de curso de pós-graduação em Engenharia de Segurança do Trabalho na
UPF. Um dia chamou-me para acompanhar um cidadão do Kuwait (que, em nome da
pureza da língua de Camões, os portugueses chamam de Coveite) a uma gira
pecuária pela Campanha Gaúcha, incluindo Bagé. Fomos os três. Lá na emblemática
Conquista, do colega Nilo Romero, o sol quase se pondo, um calor abrasador, eu,
cheio de entusiasmo, a dar explicações. Eis, senão quando perco de vista o
seguidor de Mahoma. Avisto-o voltado para Meca, descalço, ajoelhado, reverente e
contrito, a pronunciar suas preces e orações. Longos minutos passamos os dois a
contemplar a comovente demonstração de fé. O peregrino levanta-se e, ainda em
transe, pede-me que continue a explicação subitamente interrompida. Demorei
alguns segundos para recompor-me, mas segui minha arenga.
Com Edésio tive poucos contactos, a despeito de que
vivia em Santa Bárbara
do Sul. Um dia, constatei que precocemente havia branqueado seus cabelos. Não
pude, no entanto, ajudá-lo a superar esse trauma. Ainda não conhecia, como hoje
conheço, a receita das sete manhãs de ingestão em jejum de gergelim preto
indiano e o tonalizante alfaparf grafite na oitava, a qual sigo com disciplina
já faz uns quatro anos. Os cabelos ficam lindos e despertam admiração e
interesse no outrora sexo frágil, inclusive nas de menor idade.
O Gelson Mello de Lima sempre lambeu sal nos rodeios
próximos a Carazinho. Primeiro foi da extinta Coopera, onde se desempenhou com
invulgar brilho, de acordo com sua maiúscula inteligência. Depois foi para a
Cotrijal galgar destaque e postos importantes. Dizem que não se faz nada
naquela importante Cooperativa sem sua anuência. É uma espécie de Cardeal
Richelieu do presidente.
O Hélio tem defeitos e virtudes, como qualquer humano,
mas só conheço estas, que não são poucas. A cadeira de ovinocultura que teve
professores itinerantes de outras instituições, agora é exemplo para o Rio
Grande do sul. Sabe preparar boas receitas com a carne do bichinho do pull-over,
mas não me convida nunca para prová-las em sua casa. Aliás, nem a mim e nem a
ninguém. Vou guardá-lo no baú de minhas melhores recordações por dois grandes
motivos. Primeiro porque teve a inspiração de implantar lindo projeto de
pastoreio Voisin com ovinos na área do Cepagro. Segundo, porque, com a perseverança
de sempre, soube influir sobre meu filho André e despertar nele acendrado amor
pelos ovinos. A modéstia me impede de ser mais enfático e ufano, mas o guri é
dos melhores especialistas na matéria no continente. Ele tem boa genética
paterna, isso é certo, mas a contribuição heliocêntrica foi decisiva. Está
agora de Diretor da FAMV, o que me regozija sobremaneira.
Ao Falcão sou ligado pelo nome. Algo pretensioso seu
significado, mas tenho de decliná-lo. Em grego, Humberto, “gigante e
brilhante”. Foi o primeiro dos dois alunos que tive com esse lindo nome, não
raro, mas longe de ser comum. Meu tocaio só me deu motivo de orgulho, por sua
fina educação lusitana, seu destaque profissional, elevada capacidade como
agricultor e empresário. Ensaiou-se como voisinista por duas vezes. Primeiro em
Soledade, depois em Primavera do Leste (MT). Honrou-me com o pedido de
consultoria. Penso que falhei. Não o entusiasmei o bastante ou não soube
demonstrar-lhe com fatos e dados as imensas potencialidades pecuárias dos dois
locais. Não concretizou seu projeto em nenhum deles. Ainda há tempo.
O Jaime Effting
nunca havia visto depois de 1981. De uns anos para cá veio com tudo nas ondas
da rede web. Manda a mim e a todos mensagens tão dissímeis e variadas quanto as
cores do arco-íris, sem nenhuma conotação paralela ou alusão de suas
preferências. Algumas das mensagens são picantes e amenas (as melhores), outras
moralistas, outras de parcialismo político-ideológico, muitas surreais neste
fantasmagórico mundo da comunicação instantânea. É dos mais prolíficos neste mister.
João Reichert, ah o João Reichert! Era um dos mais
notórios coccídeos, agora é excelente professor de entomologia, tudo a ver. Bom
amigo e colega, esta na linha da sucessão para ser o terceiro da turma a
dirigir a Faculdade. É repassador contumaz das mensagens efftinguianas.
Aprecio muito o Lisberto Albertoni, tantos são os
motivos. Foi trabalhar na Sadia e aconselhou seu Diretor a implantar projeto
Voisin em sua Fazenda
nas serranias de Irani/SC. Teve a coragem de indicar-me como o encarregado da
missão. Não tem do que se arrepender, a fazenda é hoje referência na pecuária
de corte do vizinho estado. É dos mais acatados executivos da grande empresa
agroindustrial. Para um nativo de Aratiba já foi muito longe, mas não levem
surpresa se um dia for guindado a presidente.
O Osvaldo nunca mais soube dele, mas a ele já me
referi. Foi o organizador das solenidades de formatura e convivi com ele por
conta disso. Esquecemos o incidente mirandense, cientes dos deveres a cumprir.
Homens verdadeiros agem assim. Tenho notícia que é alto executivo da empresa
Kasper & Cia Ltda, no MS, empresa nativa de Carazinho, para a qual
trabalhei como consultor nas fazendas do centro-oeste.
Com o Norton falei uma vez por telefone e dele nunca
mais soube mais nada. Sua voz era de alegria, a mesma que ressoava nos tempos
da UPF. Soube que tem mestrado em Eng.-Ambiental e
trabalha em empresa que avalia os impactos ambientais da “Rodovia do Parque” –
Porto Alegre Esteio.
Do Raul tenho a noticia de que é potentado agricultor
vacariano. Dele um cliente meu de São Francisco de Paula, comprou milho para
compor um concentrado e ganhou polpudo desconto em função de suas ligações
afetivas com a fonte indicadora. Grato.
O Renato é um caso à parte. Sempre primou pela
impulsividade. Inclusive, na viagem de suinocultura a Concórdia, desferiu um
murro no Zico, inocente mas o primeiro a ser encontrado em sua frente.
Professor de forragicultura e pastagens na UPF, ainda não conseguiu vislumbrar
as imensas vantagens que poderá usufruir a pecuária gaúcha com o sistema Voisin
aplicado em larga escala nos nossos campos nativos, secularmente explorados sob
a égide do pastoreio contínuo e predatório. A despeito dessa diferença, não
hesitei um só minuto em apoiar ostensivamente sua pretensão em ser vice-reitor
da UPF. Perdemos, não sei se o candidato era ruim ou cabo eleitoral, pouco
convincente.
Do Sérgio lembro-me que se encrencou com alguns
militantes estrelados, os dos tempos em que eram intolerantes, mas empolgados e
sinceros. Estas características já fazem parte do passado. Quando pude externar
minha opinião a seus desafetos, disse das excelsas qualidades de meu afilhado e
recomendei-lhes paciência no trato com as dissensões. Falei com o Sérgio a
respeito e dei-lhe minhas sugestões de como agir nesses casos. Gostaria de
ouvir-lhe.
Do Boller já falei, mas sigo. Imaginemos que sucedeu o Prof. Flávio Annes
na Mecânica e Máquinas Agrícolas. Conferiu às disciplinas uma dimensão
científica e técnica antes desconhecida. Foi Diretor e se viu no meio de uma polêmica
acirrada em virtude de minha participação na Comissão do INCRA encarregada de
estudar novos índices de lotação na pecuária gaúcha. Foi tremenda a pressão que
levou dos setores interessados em manter nossa pecuária atolada no secular
atraso. Tinham até na instituição um professor que servia de aríete dessas
causas inglórias. Seu íntegro caráter e sua inteireza moral souberam superar as
borrascas e sair com ficha limpa. Certa vez fui ministrar conferência na UNESP
Botucatu e, espontaneamente, veio dizer-me um professor do curso de
pós-graduação que Boller havia sido um dos melhores alunos que havia orientado
em toda sua longa carreira.
Deixei de mencionar alguns de meus afilhados neste texto,
que espero não tenha sido em demasia longo e enfadonho. Para tanto, conto com a
condescendente deferência a minha pessoa. Por onde andarão, que terão feito e
de que se alimentaram nestes 30 anos meus colegas não citados, Aldi Rizzotto,
Antônio Rubin, Carlos Machado, Doraci Alban, os dois Flávios, o sorridente Herivelto,
o Jacir (Zico), Jairo, João Michels, Hildebrando, Mário, Milton, Nilton, Reneu
e os Paulos? Quem puder ir à festa de sábado que fale de si. Isso me encherá de
satisfação.
Acompanharam-me no quadro de formatura colegas que
valorizaram minha condição de paraninfo. O patrono Elmar, da turma por onde me
iniciei no magistério agronômico na UPF, sempre se destacou como professor,
pesquisador, palestrante, consultor e comunicador. Moisés Soares é dos Engenheiros-Agrônomos
mais conhecidos e valorizados do Brasil, mercê de seus inigualáveis
conhecimentos de legislação e exercício profissional das engenharias (todas).
Do Kipper teria muito a falar, mas basta dizer que um professor da UFSM, onde
fora ministrar aulas de matemática, o considerava um gênio. Dei ao colega a
mesma resposta dada ao de Botucatu quando se referiu ao Boller: “que estranho,
lá na UPF é considerado dos menos brilhantes. Imagina tu se viessem os mais
inteligentes.”. O Claud, quando foi homenageado pela turma, era considerado um
menino prodígio, uma espécie de enfant
gâté por sua notória inteligência. Os médicos de Passo Fundo o consultavam
sempre sobre temas de toxicologia em humanos, aí estava a justificativa.
Nunca mais ouvi falar da funcionária Cenilda. Onde
está?
Cabe-me encerrar. Só eu mesmo posso avaliar o quanto
me satisfez ser paraninfo de uma turma de Agronomia. Agradeço a todos pela
deferência honrosa e desejo a cada um o desfrute de saúde e plena felicidade.
Guardo a esperança de estar com a Turma pelo menos até quando se tenham passado
50 anos daquela noite memorável em que lhes foi conferido o título glorioso de
Engenheiro-Agrônomo.
Com carinho, afeto e emoção
Humberto
Sorio Jr.
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